Rei, louco e santo
Embora o homem da foto acima nos inspire à soberania de um monarca, também nos revela predicativos alvos do preconceito que infelizmente ainda existe no Brasil: negro, nordestino e paciente da saúde mental.
Ele é Arthur Bispo do Rosário, um artista brasileiro nascido em Sergipe. Viveu entre os anos de 1909 e 1989, mas ao completar 30 anos, teve uma crise psicológica onde, segundo ele, recebeu uma missão divina para recriar o mundo em forma de arte. O fato o levou a passar o resto dos dias em instituições psiquiátricas. E durante esse tempo foi diagnosticado com esquizofrenia, passando por tratamentos, incluindo isolamento e eletrochoque, comuns na época.
Mesmo com todas essas dificuldades, Bispo do Rosário imprimiu seu universo particular através da arte. Ficou conhecido mundo afora por meio de suas obras, que incluem objetos, bordados e instalações feitas com restos de tecido, botões, roupas e outros materiais descartados que encontrava no hospital onde vivia.
Hoje é reconhecido como uma divindade pelos críticos que o consideram um marco na arte contemporânea brasileira e o perpetuam tanto pela sua história de vida quanto pelo impacto de suas criações.
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Conduta ou condição? O questionamento que envolve histórias reais
Negro, nortista e paciente da saúde mental. A esquizofrenia também foi o diagnóstico do Fábio Sousa Santos, de 39 anos. Ele é morador de Formoso do Araguaia, município de 18 mil habitantes, localizado no Sudoeste do Tocantins, a aproximadamente 270 km da capital Palmas.
A doença sempre foi uma preocupação para os familiares, principalmente a partir da juventude, quando Fábio conheceu o crack. Os efeitos da droga desencadearam inúmeras crises de agressividade, que resultaram em processos judiciais e a detenção por dois anos em regime fechado.
Graças aos esforços da família e à implementação da Política Antimanicomial do Poder Judiciário no Estado do Tocantins, há três meses Fábio saiu da cadeia, trabalha e vive sob os cuidados da mãe e do irmão.
O caso Ximenes Lopes
Mas para entender melhor o retorno do Fábio ao convívio familiar, vamos voltar no tempo para conhecer a história de um outro personagem. Em 1999, no município de Sobral, interior do Ceará, Damião Ximenes Lopes foi encontrado morto, com sinais de agressão e tortura na Casa de Repouso dos Guararapes, extinto centro de atendimento psiquiátrico particular, na época contratado pelo Estado para prestar serviços em saúde mental por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
Devido a alterações no funcionamento do cérebro, Damião também foi diagnosticado portador de sofrimento mental e, aos 30 anos, deu entrada na "Casa de Repouso" apresentando pleno estado físico e sem sinais violência. Mas após dois dias internado, teve crises de agressividade, sendo contido à força por um auxiliar da enfermaria e outros pacientes da instituição.
Na manhã seguinte, ao visitar o filho, dona Albertina Viana Lopes encontrou Damião amarrado, com dificuldade para respirar, tinha hematomas visíveis, sangrava e estava sujo de fezes e urina. No mesmo dia foi medicado pelo diretor clínico da instituição, mas sem assistência médica especializada, não resistiu e acabou falecendo.
Justiça
A família de Ximenes Lopes buscou a Justiça e, diante ações e recursos, além da demora nas investigações e punição dos responsáveis, levou o Estado brasileiro à Corte Interamericana de Direitos Humanos em San José, na Costa Rica. Resultado: o caso deu origem à primeira condenação do Brasil por violação dos Direitos Humanos, em 2006.
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A sentença exigiu uma série de medidas do Poder Público direcionadas à garantia de direitos e qualidade de vida da pessoa com transtornos mentais. Entre elas, a criação da Política Antimanicomial do Poder Judiciário, instituída através da Resolução nº 487/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A normativa considera, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, como dispõe o inciso III do artigo 1º da Constituição Federal de 1988; e também a reestruturação dos modelos assistenciais em saúde mental, prevista na Lei nº10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica.
Desinstitucionalização
A resolução do CNJ ainda determina a revisão de processos envolvendo pacientes da saúde mental diagnosticados, em conflito com a lei, sob custódia ou apenados no sistema prisional. O objetivo é a desinstitucionalização dessas pessoas e progressão das ações penais para um tratamento ambulatorial, incluindo transferência para estabelecimento de saúde adequado.
Traduzindo: pacientes da saúde mental, cumprindo pena em penitenciárias ou manicômios judiciários, retornam ao convívio social sendo integrados às unidades de acompanhamento do Sistema Único de Saúde (o SUS) como, por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
Titular da 4ª Vara Criminal e Execuções Penais na Comarca de Palmas, o juiz Allan Martins Ferreira, lembra que o Código Penal brasileiro é de 1940 e se mostra, atualmente, em desacordo com a Política Antimanicomial do Poder Judiciário.
“Ainda vivemos uma situação onde pessoas com transtornos mentais diagnosticados e declaradas inimputáveis, são presas impropriamente e cumprem pena como um prisioneiro comum, sem nenhum tratamento adequado. Isso revela um certo grau de atraso e descompasso com a própria Lei da Reforma Psiquiátrica, que preconiza o tratamento em meio aberto e na base territorial do sujeito”, disse o magistrado.
O preconceito
Ainda que o estado de saúde tenha levado Fábio à prática de delitos, Valdineis Sousa Santos perdeu a conta dos episódios de preconceito sofridos pela família em virtude da condição do irmão.
“Lembro uma vez, estava com um colega que havia perdido o celular. E neste dia o Fábio teve uma crise, estava andando pela rua e se aproximou da gente. O colega colocou a culpa nele. Mas minha esposa também estava no local e viu que o Fábio não tinha pegado o telefone”, conta, ressaltando que "mesmo Formoso (do Araguaia) sendo uma cidade pequena, e a nossa família ser conhecida como 'gente trabalhadora', infelizmente ainda passamos por esse tipo de situação”, comenta.
De mãos dadas
Para conduzir o processo de desinstitucionalização de pacientes mentais, a Política Antimanicomial recomenda uma atuação conjunta entre diversas instituições públicas, com a criação de um Grupo de Trabalho Interinstitucional em Saúde Mental (GTI). No Tocantins, ele é formado por representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Executivos - Estadual e Municipal, por meio das Secretarias de Saúde.
Entre as atribuições, cabe ao GTI garantir a atuação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), composta por equipamentos do SUS que, além dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e outros serviços, também dispõe de: Residenciais Terapêuticos (SRT), responsáveis pelo acolhimento dos pacientes que não possuem vínculos familiares; Centros de Convivência e Cultura; e Programa de Volta para Casa (PVC), que presta auxílio aos pacientes que retornam ao núcleo familiar.
O Grupo também é responsável por formar uma Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), que oferece um acompanhamento multidisciplinar e monitorar cada caso, antes, durante e após a saída do sistema prisional.
Panorama no Tocantins
No Tocantins, o juiz Allan Martins Ferreira também é coordenador do Grupo de Trabalho Interinstitucional em Saúde Mental. Ele revela que a EAP tocantinense conta com dois médicos psiquiatras, dois psicólogos, dois assistentes sociais, um enfermeiro e um farmacêutico. E de acordo com o magistrado, além do Fábio, a equipe cuida de outros 17 pacientes da saúde mental em processo de desinstitucionalização no Estado.
“Há um ano esses 18 casos já estão sendo estudados, com a EAP se debruçando sobre a situação de cada um. E de todos os casos, nós avaliamos que seis pessoas não possuem mais vínculos familiares e serão encaminhadas para uma Residência Terapêutica. Uma moradia comum, inserida na sociedade sob o cuidado de profissionais capacitados. Lá é oferecida toda assistência necessária para que esses pacientes possam restabelecer o convívio social”, explica.
Atualmente o Tocantins possui duas Residências Terapêuticas, mas apenas uma vaga disponível. A partir daí, uma parceria entre o Judiciário tocantinense e a prefeitura de Palmas, através da Secretaria Municipal de Saúde, vai viabilizar a instalação de mais uma unidade, como esclarece o magistrado.
“A Residência Terapêutica só recebe financiamento do SUS e do Ministério da Saúde a partir do momento que é habilitada. Por isso, inicialmente faremos um termo de cooperação para viabilizar o funcionamento desta nova unidade que vai receber esses seis pacientes”, ressaltou.
Em casa
Os outros 11 pacientes que possuem vínculo familiar retornam para a casa, na tutela de algum parente, como é o caso do Fábio. De acordo com Valdineis, “hoje o Fábio tá de boa”, lembrando que além de realizar atividade laboral, o irmão comparece uma vez por semana ao Caps. “Toda quarta feira ele se apresenta lá no Caps. É atendido pela médica, eu também converso muito com ela. Lá o Fábio também assina um papel, um documento que prova que ele está em tratamento”.
Seja vivendo na Residência Terapêutica ou com algum familiar, todos os pacientes desinstitucionalizados têm um Caps à disposição no município da localidade onde vivem. E, "a cada 30 dias, a Eap apresentará um relatório ao juiz criminal responsável pelo processo criminal ou medida de segurança de cada um", informa o juiz Allan Martins Ferreira.
Sensibilizar também é papel do Judiciário
Outra competência do Grupo de Trabalho Interinstitucional em Saúde Mental (GTI) é a sensibilização da sociedade civil, através de campanhas e troca de conhecimentos. O Judiciário tocantinense, por exemplo, oferece um curso de formação inicial, direcionado à integrantes do Sistema de Justiça sobre a implantação da Política Antimanicomial no Tocantins.
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"É um encontro direcionado a juízes, promotores, defensores públicos, advogados, profissionais da assistência social e da saúde atuantes nas esferas municipal e estadual, estudantes. Na programação nós buscamos trazer especialistas de todo país, pessoas com muita experiência sobre a temática, sobre a própria Resolução nº 487 e a Lei nº 10.2016. Ou seja, é uma oportunidade de padronizar, de nivelar o conhecimento e apresentar à sociedade o que já fizemos e o que podemos fazer", completa o magistrado Allan Martins Ferreira.
Desde 2006 o Brasil vem desenvolvendo políticas de cuidado e inclusão de pessoas pacientes da saúde mental. E a boa notícia é que, diante dos resultados, em 2023 a Corte Interamericana de Direitos concluiu a sentença dada ao país no caso Ximenes Lopes, como você pode conferir clicando aqui.
Mas isso não significa que a Luta Antimanicomial terminou. Há muito trabalho pela frente e a transformação da sociedade começa pela transformação do olhar do cidadão e cidadã. O Valdineis entende que pessoas como o Fábio devem ser assistidas pela condição de saúde e não como criminosos.
“Deus fez nós todos iguais, ninguém é mais que ninguém. Aqui em Formoso, ele é discriminado por ter esse problema, mas ele é trabalhador, sempre foi trabalhador e nunca foi abandonado por nós (a família)”, conclui.
A aplicação da Política Antimanicomial do Poder Judiciário é uma mudança fundamental para a conscientização e combate ao preconceito vivido por Arthur Bispo do Rosário, Damião Ximenes Lopes, Fábio Sousa Santos e várias outras pessoas portadoras de transtornos mentais. Mas precisa da sua contribuição para promover uma sociedade mais justa e solidária!