
“Quem quer/pode ser negro no Brasil?”. A pergunta, lançada logo na abertura pelo professor doutor Rodrigo Ednilson de Jesus, não ficou no ar como mera provocação. Ao longo de dois dias intensos (11 e 12 de agosto), ela ganhou corpo, história e contexto, conduzindo magistrados(as) e servidores(as) do Poder Judiciário Tocantinense por um percurso que passa pelo passado escravista, atravessa o pós-abolição e chega às práticas contemporâneas de ações afirmativas e heteroidentificação racial.
A capacitação, com carga horária de 20 horas-aula, promovida pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), abordou as discriminações positivas e a necessidade das comissões de heteroidentificação racial, previstas em políticas públicas como as cotas.
Coordenado pelo juiz Arióstenis Guimarães Vieira, o curso integra a programação de capacitações voltadas a magistrados(as) e servidores(as), com base na Resolução nº 541 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2023, que estabelece diretrizes para a atuação das comissões em concursos públicos.
Na abertura, o juiz Arióstenis destacou que a iniciativa nasceu de uma solicitação da própria comissão e que a participação de magistrados(as) é fundamental para fortalecer a efetividade das ações afirmativas.
História que explica o presente
No primeiro dia, o professor Rodrigo optou por iniciar do zero: a construção histórica do racismo no Brasil. Um panorama essencial para compreender as desigualdades raciais no país. Relembrou que o Brasil foi o maior destino de africanos escravizados durante o tráfico transatlântico, cerca de 4,9 milhões de pessoas entre 1550 e 1860, correspondendo a 40% de toda a diáspora africana.
O Brasil foi também o último país das Américas a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888, após mais de 300 anos de exploração. Nesse período, pessoas escravizadas enfrentavam jornadas de trabalho extenuantes, punições físicas legalizadas e expectativa de vida que raramente ultrapassava 30 anos.
Segundo o professor, “antes das ações afirmativas, existiram ações negativas direcionadas à população negra”, como a proibição da alfabetização de escravizados (Lei de 1850) e a exclusão do acesso à terra. Após a abolição, a ausência de políticas de reparação, aliada a medidas de criminalização – como a Lei da Vadiagem de 1933 –, manteve e reforçou a hierarquia racial herdada do período escravista.
Representações, narrativas e silêncios
Doutor em Educação, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo falou sobre representações sociais coletivas, lembrando que a forma como olhamos e nomeamos o outro ajuda a criar – e a sustentar – a ideia desse(a) outro(a).
“O silêncio também é uma gramática, uma narrativa que constrói determinadas realidades; a própria língua brasileira é construída em cima da racialização”, afirmou.
O professor instigou os(as) alunos(as) a pensarem nas cotas para além do senso comum, alertando para as contradições e às disputas presentes em qualquer mito social e para a influência do contexto histórico e geográfico na percepção sobre quem é negro no Brasil.
O papel das comissões de heteroidentificação
Ao tratar da prática das comissões, o professor destacou que a função não é combater fraudes, mas assegurar que a política alcance o grupo a que se destina. A avaliação considera como a pessoa é socialmente reconhecida como negra, e não apenas a existência de ascendência ou parentesco.
“A banca não tem a obrigação de definir a veracidade da autodeclaração. Ela é complementar”, explicou.
Rodrigo também trouxe o desafio de lidar com graus de subjetividade e a importância de parâmetros claros para decisões justas. Ao longo das discussões, ficou claro que lidar com a subjetividade faz parte do processo, e que o desafio é buscar consensos intersubjetivos, evitando tanto essencialismos quanto relativismos.
Mais informações sobre o curso
A capacitação também contou com uma etapa de ambientação virtual. Ao todo, foram disponibilizadas 50 vagas para magistrados(as) e servidores(as) do Poder Judiciário Tocantinense. A programação incluiu fundamentos históricos, sociais e jurídicos das ações afirmativas; conceitos de raça, racismo, branquitude e colorismo; aspectos técnicos da avaliação fenotípica; critérios para composição e atuação das comissões; análise de casos concretos e jurisprudência; elementos de comunicação e registro de decisões.