Com o tema “O que não dizer: comunicação responsável com mulheres em situação de violência”, o médico psiquiatra Wordney Carvalho Camarço, um dos coordenadores do Núcleo de Acolhimento e Acompanhamento Psicossocial (Napsi) do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO), conduziu, nessa segunda-feira (30/6), uma palestra que reforçou como cada frase dita, mesmo que de forma aparentemente neutra, pode ser decisiva entre promover acolhimento genuíno ou provocar revitimização.
A apresentação teve a coordenação da juíza Umbelina Lopes, titular da 2ª Vara Criminal e Execução Penal da Comarca de Porto Nacional, e integrou a programação do evento Fortalecendo Laços – Estratégias de Acolhimento e Proteção para Mulheres do Judiciário, realizado no auditório do TJTO. Durante a sua fala, a magistrada agradeceu à Presidência do TJTO pelo compromisso com a causa.
“Agradeço à desembargadora Maysa Vendramini por esse importante programa de fortalecimento das estratégias de acolhimento e de proteção para as mulheres do Poder Judiciário, porque, como sabemos, a violência doméstica e familiar está em todas as classes sociais e também independe da profissão que a mulher venha a exercer. Então, por isso é importante estarmos aqui para falar dessa pauta”, pontuou.

Ela também compartilhou sua experiência profissional no atendimento de casos de violência doméstica e destacou que a prevenção passa, necessariamente, pela educação e conscientização. Relatou que frequentemente vai às escolas dialogar sobre machismo e preconceito – questões estruturais que precisam ser enfrentadas com informação. Ao tratar da importância de uma comunicação ética e empática, ressaltou:
“Nós não temos a mulher apenas como instrumento de prova. A lei assegura que essa mulher seja acolhida, num momento reservado, com sigilo, com empatia, sem fazermos um juízo de valor, com aquela verticalidade. O juiz ou a juíza que está presidindo o ato precisa ter a consciência de que ele ou ela precisa intervir quando as perguntas ou as abordagens ocorrerem de forma indevida”.
Em sua exposição, o psiquiatra Wordney Camarço evidenciou que reconhecer que a violência ultrapassa a dimensão física e pode ser também psicológica, patrimonial, moral e sexual é fundamental para oferecer um suporte integral.
Ao longo da apresentação, foram exemplificadas frases e abordagens que, em vez de proteger, transferem à vítima o peso da culpa e perpetuam o sofrimento instaurado pela violência. “A forma como nos colocamos, dependendo daquilo que falamos, como nos comportamos, acabamos comprometendo, levando ao insucesso daquela tentativa de pedido de socorro daquela mulher”, destacou.

Entre os exemplos citados, questionamentos como: “Por que você não o deixa?”, “Você deve ter feito algo para provocar isso” ou “Pelo menos ele não te matou” ilustram a violência discursiva, que pode ser tão nociva como outras formas de agressão.
Segundo ele, “a forma como nos comunicamos com essas mulheres em situação de violência pode ser um instrumento de cura ou de perpetuação do sofrimento”.
O palestrante também abordou o ciclo da violência – tensão, explosão e reconciliação – e alertou que muitos agressores relativizam a gravidade de seus atos. Ao explicar o conceito de revitimização, reforçou que a escuta qualificada e o uso consciente da palavra são passos decisivos para romper a engrenagem do silêncio.
“A questão é não julgar. Nós não podemos julgar a vítima, não devemos fazer conjecturas: por que aconteceu, se ela contribuiu, se ela não contribuiu. Nós precisamos ouvir e fazer com que aquela vítima se sinta bem, acolhida e segura”, disse.
Ao final, enfatizou que o TJTO conta com uma equipe multidisciplinar composta por psiquiatra, psicólogo, assistente social e enfermeiro, dedicada ao atendimento e apoio das mulheres em situação de violência.
Acolhimento humanizado de magistradas e de servidoras que estejam em situação de violência doméstica e familiar, do Poder Judiciário Tocantinense
Na segunda palestra do evento, a juíza Flávia Afini Bovo, diretora do Foro de Palmas, coordenou a Mesa e reiterou a relevância da iniciativa. Ao saudar as participantes, reforçou: “não estamos sozinhas e saber disso é muito importante”.

Para conduzir a exposição, foi convidada a pesquisadora e advogada Cláudia Luna. Ao iniciar sua fala, a palestrante destacou que refletir sobre escuta humanizada implica revisitar os discursos históricos que moldaram percepções sobre o lugar feminino e a naturalização da violência.
“Falar sobre escuta humanizada passa pelo que a gente ouviu secularmente sobre nós, sobre violência. E a proposta, quando se fala de uma escuta humanizada, é para que a gente possa também, a partir dessa escuta humanizada e qualificada, pensar em caminhos para a criação dessa rede de fortalecimento e de atendimento às mulheres”, explicou.
A advogada ressaltou a importância de reconhecer que não há apenas desafios globais, mas também locais. Dados apresentados ilustram esse cenário: 33% das mulheres tocantinenses já sofreram algum tipo de violência doméstica, e 24% vivenciaram agressões nos últimos doze meses. Somados a isso, os registros do Ligue 180 apontam um aumento de mais de 18% nos atendimentos em relação ao ano anterior, superando quatro mil ocorrências em 2024.

“A criação dessa rede de apoio torna-se essencial para garantir a segurança e o bem-estar de servidoras, magistradas e colaboradoras”, pontuou.
Ao longo da exposição, Cláudia relacionou os dados à história do país e citou o “estupro colonial”, uma violência estruturante que ainda reverbera nos padrões sociais, afetando de forma mais intensa mulheres pretas, pardas, indígenas, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros.
“Todos nós somos frutos desse chamado estupro colonial, que até mesmo dados da ciência genética declaram que nosso DNA, enquanto Brasil, vem desse estupro colonial cometido por essa figura do bandeirante que representa o homem branco, mais velho, rico e que tinha poder”, contextualizou.
Ela sublinhou que compreender essas raízes históricas ajuda a entender por que, atualmente, a violência sexual aparece como uma das principais formas de agressão no Tocantins e por que determinados corpos seguem como alvo de violações legitimadas por estruturas discriminatórias.
“Por que é importante conectar o passado com o presente? Porque, de acordo com dados estatísticos, qual é a violência que mais aparece aqui no Tocantins hoje? A violência sexual. Se eu não leio os fatos históricos e não faço essa conexão com os dados estatísticos no presente, não consigo fazer o que chamamos de semiótica, ou estudo do símbolo e significado do meu território, para compreender as dinâmicas de violência que acontecem nesse lugar”, destacou.
Para além do diagnóstico, a palestrante convocou as instituições e seus integrantes masculinos a assumirem compromissos concretos e compartilhados. “É essencial que haja um compromisso dos homens com essa temática também, porque não adianta nós estarmos conversando e falando de nós para nós. Porque, diferente das ausências dos homens para essa temática, é interessante a gente dizer que essa bomba atômica da violência de gênero e de raça só vai ser desarmada quando tivermos homens e mulheres aliados e alinhados nesse propósito, não tem como fazer isso separadamente”, defendeu.
Cláudia Luna finalizou dizendo que “a criação e o fortalecimento dessa rede no TJ Tocantins não é apenas uma medida de apoio, mas também um investimento na integridade, na saúde e na produtividade de suas profissionais, e, por extensão, na própria credibilidade e eficácia da instituição na promoção da justiça para toda a sociedade”.