Invisibilidade, higienismo social e eugenia são abordados em palestra sobre Manicômio Judiciário

Foto: Hodirley Canguçu

Cabeça raspada, dentes arrancados, uniforme. Foi nesta condição que Walter Farias viu sua identidade se perder e se tornar mais um em meio a tantos quando deixou o posto de atendente de enfermagem para assumir o papel de paciente do Complexo Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (SP), a cerca de 50 Km, da capital paulista.

As pessoas pensam que a loucura é uma coisa muito difícil de acontecer e não é. Se você não dorme por algum problema que não tem com quem desabafar ou não consegue resolver, não tem um psicólogo e já está naquela linha tênue entre a razão e a loucura, você sofre. E quando você passa da linha tênue pra lá, já era - disse Walter Farias, que passou de capa-branca à invisibilidade social.

A fala acima compõe o livro “O capa-branca: de funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil”, do jornalista Daniel Navarro Sonim com co-autoria de Walter Farias. Os dois apresentaram esta história na abertura das discussões sobre política antimanicomial ocorrida na tarde desta quarta-feira (28/8).

Durante a palestra, “A internação no ‘Manicômio Judiciário’: tratamento de saúde ou intensificação do adoecimento?”, Sonim destacou que é preciso sair da bolha e valorizar as trocas. “Estamos há 10 anos na estrada em um grande momento de troca. É preciso sair da bolha e adentrar outros espaços para tirar o manicômio da cabeça das pessoas, pois acreditamos que muitas coisas se resolvem olhando o próximo e não excluindo”, descreveu o encontro, ao abrir a tarde de discussões sobre política antimanicomial.

A palestra integrou a programação da Formação Inicial de Profissionais para a Implantação da Política Antimanicomial no Sistema de Justiça no Estado do Tocantins. Uma Iniciativa do Poder Judiciário do Tocantins, através da Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), em parceria com a Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Capa-branca

Toda a história de Walter Farias é narrada pelo escritor e jornalista, Daniel Navarro Sonim. Ele também assina a obra “Cinzas do Juquery: os horrores no maior hospital psiquiátrico do Brasil”. Conhecido como capa-branca, pela referência ao jaleco, o ex-funcionário do Complexo chegou ao Juquery em 1972, aos 19 anos, para cuidar de pacientes acamados do Hospital Psiquiátrico e viu sua sanidade mental ser abalada ao ser transferido para o Manicômio Judiciário do Complexo, quando passou a conviver com pacientes que cometeram crimes, alguns deles agressivos. Daí a necessidade da extração dos dentes, “era o tratamento da época, sem anestesia, nem nada, para evitar que os pacientes mordessem os funcionários”, conta Farias.  

“Quando eu falo que a gente tem que tirar o manicômio da cabeça das pessoas, tem duas coisas que estão dentro desse manicômio: o higienismo social, que é excluir quem é diferente e mandar pra longe, e a própria eugenia, pegar a pessoa que tem uma característica que a gente não concorda muito e mandar pra longe pra não se misturar com quem é interessante”, disse o jornalista.

Ao compartilhar sua vivência entre a linha tênue da sanidade mental, Walter Farias trouxe reflexões sobre as percepções que teve em um manicômio. “Eu passei a sentir que a minha saúde não estava boa quando eu fui excluído do meio dos outros funcionários. Porque havia 5.600 funcionários, todos na minha cidade e praticamente eu conhecia todos. Mas para onde eles me transferiam, para qualquer colônia, porque são cinco cidades, cada uma com uma colônia, fora do hospital central, quando eles me transferiam para um local daquele, eles mandavam o meu prontuário de funcionário, dizendo que eu era um péssimo funcionário. Então, você chegava já lá, já não tinha ambiente, eu era o maçã podre. Lá fora a gente se divertia, se conhecia, passeava junto, mas lá dentro eles não conversavam comigo. Aí eu percebi que tinha algo errado”, conta Walter explicando que a internação durou aproximadamente um ano e ocorreu por recomendação do psiquiatra da instituição.  

O jornalista Daniel Navarro explica que Walter não queria atuar no Manicômio Judiciário e ali começou seu embate, tanto institucional, quanto mental. 

"O Walter foi transferido para trabalhar nessa realidade, com paciente de transtornos mentais, mas que também tinham cometido crimes. Então, ele passou de atendente de enfermagem a carcereiro. E ele pedia para voltar, para trabalhar na clínica e ninguém dava ouvidos. Com isso, a própria realidade de cadeia foi minando a sanidade dele, até que ele não teve outra alternativa a não se internar, para continuar como funcionário público porque se não ele provavelmente seria exonerado e aí passou a viver na pele tudo que os outros viviam, todo abandono, os maus tratos, a própria descaracterização de capa-branca pra paciente, onde todo mundo é igual a todo mundo", explicou.

Complexo Psiquiátrico do Juquery

Fundado em 1898, o Complexo Psiquiátrico do Juquery nasceu com a proposta de acolher 800 pacientes e chegou a atender 18 mil internos, inclusive pessoas em conflito com a lei com transtorno mental. O Complexo foi desativado em 2001 quando passou a abrigar o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima. Toda a história do Complexo também foi apresentada na palestra.

Judiciário tocantinense na vanguarda

“Nunca acreditei na luta antimanicomial. A luta existe no coraçãozinho de cada um de vocês. Não existe um presidente, um conselho, um lugar físico. Mas aqui vocês estão dando um pontapé inicial neste trabalho. Estão de parabéns”, disse Walter Farias ao enaltecer a iniciativa do Judiciário do Tocantins em discutir o tema.
 
A proposta do evento é capacitar todos os atores envolvidos processo de desinstitucionalização de pacientes mentais no Estado. A Política Antimanicomial recomenda uma atuação conjunta entre diversas instituições públicas, com a criação de um Grupo de Trabalho Interinstitucional em Saúde Mental (GTI). No Tocantins, ele é formado por representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Executivos - Estadual e Municipal, por meio das Secretarias de Saúde.

Atualmente, do total das 18 pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, 12 estão em Araguaína, quatro em Cariri, um em Colinas e outro foi transferido de Arraias para Palmas. E o Estado conta com duas ressidências terapêuticas para receber presos desinstitucionalizados, uma em Araguatins e outra em Araguaína. Em Palmas está em fase de implantação.

Formação reflete sobre o tema

Com o objetivo de levar momentos de reflexão e capacitação acerca do tema transtornos mentais, luta antimanicomial, e legislação pertinente a partir de palestras, a Formação Inicial de Profissionais para a Implantação da Política Antimanicomial no Sistema de Justiça do Estado do Tocantins teve início na manhã desta quarta-feira (28/8) e segue até sexta-feira (30/8), no auditório do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO).
 
Confira a programação completa aqui. 

Leia a matéria da abertura do evento.


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    A Escola  Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT), órgão do Tribunal de Justiça do Tocantins, com sede na capital Palmas e abrangência em todo o Estado, tem por objetivo a formação e o aperfeiçoamento de magistrados e servidores como elementos essenciais ao aprimoramento da prestação jurisdicional.

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