Sessenta e seis anos de idade, 34 de magistratura, 41 de casamento, três filhos, dois netos, e uma vivacidade e memória que faziam inveja. Ouvir Sérgio Aparecido Paio, juiz da Vara dos Feitos da Fazenda e Registros Públicos da Comarca de Araguaína, era passear pela história do Judiciário e, de quebra, do Tocantins. Todos os relatos desta reportagem foram feitos pelo magistrado, durante entrevista concedida à equipe do Centro de Comunicação do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) em novembro de 2023, antes do seu falecimento repentino, em janeiro de 2024.
Sua história ilustra o mês de Março no calendário institucional 2024. O produto, juntamente com a agenda, faz parte do kit comemorativo dos 35 Anos do TJTO e traz uma série especial com homenagens a pessoas que contribuíram para a construção da história da Casa de Justiça. As 11 histórias estão publicadas no site do TJTO e o acesso pode ser feito pelo QR Code disponível em cada mês do calendário.
“É sempre uma honra você poder se ombrear com homens e mulheres de garra e fibra que fizeram a história do Tocantins. É importante fazer parte, sim, mas é preciso reconhecer o trabalho de todos. A gente esteve junto? Esteve, como parte da história, apenas isso, sem ser protagonista. Há outros protagonistas que merecem todo o nosso respeito e admiração”, destaca o magistrado.
Paulista, o magistrado começou a carreira em Roraima e chegou ao Tocantins em 1989 para assumir o cargo de juiz no primeiro concurso realizado, depois da criação do Estado. Ele foi designado para o município de Aurora, na região Sudeste, para instalar a Comarca, mas por falta de condições, foi convocado a voltar para Miracema, na época capital provisória, para ficar à frente de uma das Varas, após José de Moura Filho assumir o cargo de juiz corregedor.
Em Miracema, ficou de 15 a 20 dias, isso porque o presidente do Tribunal de Justiça na época, Osmar José da Silva, se aposentou e, o então juiz José de Moura Filho assumiu uma cadeira na Corte. Novos juízes foram empossados, e Sérgio Paio foi convocado para Araguaína, onde instalou a então 4ª Vara Cível, que hoje é a 1ª Vara de Família da Comarca, onde permaneceu até 1993.
No mesmo ano, foi titularizado como juiz da Comarca de Augustinópolis. Na sequência, foi promovido para Filadélfia e depois, em 1994, para Araguaína, na 2ª Vara Criminal, que tinha à frente o magistrado José Aluísio da Silva Luz, que dá nome ao Fórum da cidade. Ficou na Vara Criminal até junho de 1999 e pediu remoção para a recém-criada Vara da Fazenda Pública e Registro, onde permanece até hoje.
“Eram tempos difíceis no começo. A Comarca de Araguaína possuía duas varas cíveis e uma criminal, em 89, e então, logo com a implantação do Estado do Tocantins, o Tribunal fez as primeiras alterações, por resolução, na Lei de Organização Judiciária de Goiás, que prevalecia no Tocantins. Foram criadas outras varas. Quando cheguei para instalar a 4ª Vara Cível, éramos seis juízes na Comarca de Araguaína.”
O juiz lembra que o Tribunal do Júri, que ficava na antiga sede do fórum, no centro de Araguaína, foi transformado em gabinetes para acolher juízes e membros do Ministério Público Estadual, que não tinha estrutura. “Além da falta de estrutura, sofríamos com falta de estradas. Colegas que foram instalar comarcas em Axixá, Formoso do Araguaia, Araguaçu tinham dificuldade até pra chegar às comarcas. A estrada de Araguaína para Xambioá ia pouco além de Carmolândia. Dalí pra frente era estrada de terra, nem sempre transitável, o que não era diferente em outras regiões do estado.”
“Dificuldades foram muitas, mas vitórias e sucessos foram maiores”
Mas as dificuldades não se resumiam às comarcas. O juiz diz que é preciso reconhecer que o próprio Tribunal de Justiça não tinha uma estrutura administrativa e funcional adequada. “Nenhum dos desembargadores nomeados para compor a corte inicial havia sido desembargador. João Alves era o que tinha mais experiência, porque foi diretor do Fórum de Goiânia, quando foi convocado e nomeado para o Tocantins”, observa, acrescentando que, “aparentemente, o norte do Tocantins era meio que um quintal de Goiânia e não havia estrutura, inclusive, no Poder Judiciário”.
Fato curioso, lembrado pelo magistrado, é que no Código de Organização Judiciário, adotado pelo Tocantins e que era de Goiás, dizia que “acima do paralelo 13 contava-se em dobro o serviço e tinha uma remuneração, salvo engano, de cerca de 10% a mais para quem quisesse vir trabalhar no norte do antigo Goiás, hoje Tocantins”, enfatizou. “Evidente que, com a criação do estado, a partir do paralelo 13, não houve mais essa gratificação e essa contagem fictícia de tempo de serviço”.
Mas como diz Sérgio Paio, “dificuldades foram muitas, mas vitórias e sucessos foram maiores.” Prova disso é que, segundo o magistrado, já no início do Tribunal, tinha a ideia de que os juízes estivessem vivendo mais próximo da comunidade. “Lembro-me que assim que o desembargador Antônio Félix assumiu (1995 a 1997), ele criou um programa, o ‘Comunidade, Justiça em Ação’. Foi um programa que procurava uma forma, do que se prega hoje, que a conciliação seja um grande aparato para se diminuir essa taxa de congestionamento que tem no Judiciário.”
Pilares de um Judiciário pioneiro
Sérgio Paio enfatiza que várias facetas contribuíram para que o Poder Judiciário no Tocantins se transformasse ao longo dos anos, até que se chegou o momento em que se pensou em alterar a infraestrutura física e foi iniciada a construção dos fóruns. Um dos primeiros foi o da Capital, Palmas.
“Muito pioneirismo, história. A gente acaba vivendo muitas histórias, por ouvir dizer, pelo noticiário, por relatos de outros colegas, mas são situações que muitos tinham o mesmo pensamento. E qual era o pensamento? Atingir o melhor que se pudesse.”
Em relação à estrutura física dos fóruns, o juiz é enfático ao dizer que, hoje, é completamente diferente. “Primeiro precisou-se organizar os quadros da justiça. Tive o prazer e a honra de presidir o primeiro concurso dos servidores do Tribunal de Justiça do Tocantins”, lembra, complementando que foram várias evoluções, como a implantação do Sistema Processual, depois o Eproc.
“A partir daí, há uma evolução quantitativa e qualitativa da prestação do serviço jurisdicional. Evidentemente que, ao lado da evolução, houve um aumento crescente da demanda, que já era volumosa.”
O magistrado
O juiz, que fez a opção de consolidar sua carreira em Araguaína, diz que é “um provinciano”. Mas, mais do que isso, ressalta que o fato de ter uma formação humanística o ajudou nos desafios enfrentados. “Eu sempre digo que direito, justiça é bom senso acima de tudo. Eu sei que, às vezes, os tempos não são fáceis de a gente falar em bom senso, mas eu sempre, assim, guiei a minha vida, seja no dia a dia com a minha família, seja no meu tempo antes de assumir a magistratura (...). Essa formação humanista de muitas vezes saber que a emoção é importante, mas que a razão e a legalidade se sobrepõem a tudo. Eu brinco que sempre que eu sou no trato do dia a dia um juiz absolutamente informal, mas no processo um juiz absolutamente formal.”
Sérgio observa ainda que é preciso viver a realidade do momento.
“Venho de uma família simples, aprendi com meu pai que por mais ruim que seja a verdade, ela sempre deve prevalecer. São princípios que você carrega da educação familiar, da sua própria história ao longo de uma vida. Eu não diria que as dificuldades enfrentadas me mudaram eu diria que eu utilizei a experiência que eu tinha para poder moldar e ultrapassar as dificuldades e obstáculos vividos.”
E nestas três décadas, o juiz faz uma referência aos servidores (as) do judiciário. “Tem que se lembrar de tantos servidores que nos auxiliaram esses anos todos. São as nossas mãos, são os nossos pés. Sempre referimos aos servidores de justiça como longa manus dos juízes. Se estamos na linha de frente, com a cara, a coragem e o nome e algum conhecimento jurídico, eles estão no dia a dia no atendimento geral ao público e trabalhando.”
Com pedido de aposentadoria protocolado desde 2019, o magistrado não faz muitos planos. “O duro vai ser aprender a recomeçar, pelo menos no momento, mas o futuro a Deus pertence. Vamos completar os 35 anos de exercício efetivo e ininterrupto da magistratura.”