Justiça que acolhe, saúde que escuta, políticas que transformam realidades

Foto: Hodirley Canguçu

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” A frase, atribuída à sabedoria ancestral africana, atravessa o tempo e as fronteiras para nos lembrar de que o cuidado é um ato coletivo e profundamente humano. Cuidar de uma criança ou de um adolescente não é tarefa restrita à família, ao Estado ou a uma instituição. É tarefa de todos(as). E mais do que uma tarefa, é compromisso ético e político.

Durante os dois dias (22 e 23 de outubro) de programação no auditório do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO), o evento “Interfaces entre Sistema de Justiça, Saúde Mental e Socioeducação”, organizado pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), não apenas promoveu diálogos, mas também construiu vínculos, redes e sentidos. Trouxe à tona histórias de adolescentes, desafios institucionais, tensões entre controle e cuidado. E, acima de tudo, reafirmou que a singularidade das adolescências precisa ser reconhecida. Não há soluções genéricas para sujeitos atravessados por desigualdades, traumas e invisibilidades históricas. Há, sim, a possibilidade de escuta, ética e afeto.

Encerramento

Nessa quinta-feira à tarde, a Mesa Temática 5 tratou da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI), uma política ainda pouco conhecida para quem não trabalha diretamente na área, mas essencial para garantir a integralidade do cuidado a adolescentes em regime de internação, internação provisória ou semiliberdade.

A expositora Caroline Maria Arantes de Morais, do Ministério da Saúde, destacou como a intersetorialidade vem ganhando espaço na execução dessa política.

“Esses espaços de diálogo são sempre muito importantes. A gente tem observado que a PNAISARI tem se aproximado muito do Sistema de Justiça, e essa articulação é essencial para que a política seja de fato efetivada. É necessário um alinhamento entre as expectativas dos diversos setores”, disse.

Caroline também falou sobre a atuação da Coordenação do Acesso e Equidade – Saps –, especialmente voltada à promoção de estratégias que respeitem a diversidade e a vulnerabilidade social, buscando transformar a equidade em saúde em prática concreta, e não em retórica.

O expositor Fernando Libânio, da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, trouxe uma fala didática sobre a puberdade e a adolescência, abordando as múltiplas adolescências, os marcadores sociais e os ritos de passagem, que, de acordo com sua exposição, são momentos simbólicos que permitem aos(às) jovens se reconhecerem como parte de um corpo social maior.

Israel Tainan Lima e Chaves, também da Secretaria de Saúde de BH, apresentou um relato sobre sua vivência prática na clínica com adolescentes em conflito com a lei. Afirmou que a atuação não se sustenta em protocolos fixos, mas na capacidade constante de “reinventar modos de fazer”.

“A saúde não é uma imposição. É uma oferta ética de cuidado”, frisou.

A mediação da Mesa foi feita por Tamyze Bezerra Gomes, do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Medidas Socioeducativas do TJTO (GMF), que reforçou a importância de se pensar o cuidado para além das estruturas institucionais.

Uma conferência que fecha o evento e abre caminhos

Na conferência de encerramento, o juiz Afrânio José Fonseca Nardy, da Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte, provocou o público com uma fala sensível e afetiva sobre o cuidado como elemento fundante da socioeducação. “Quando somos convocados(as) em momentos como este, precisamos fazer um esforço a mais para falar no ombro de gigantes (...) Eu acredito numa pedagogia em que todos(as) somos, ao mesmo tempo, ensinantes e aprendentes”, iniciou.

Falando sobre a saúde no contexto socioeducativo, destacou que é preciso ultrapassar o modelo biomédico e abraçar a perspectiva da clínica ampliada, um conceito já consolidado na saúde pública brasileira.

“Não se trata apenas de curar uma moléstia ou melhorar indicadores. O centro é a produção do cuidado. E esse cuidado só pode ser construído com base em afetos”, pontuou.

A conferência foi mediada pelo juiz Adriano Gomes de Melo Oliveira, coordenador da Infância e Juventude do TJTO, que alertou para os desafios concretos da política pública e à necessidade urgente de recursos e continuidade institucional.

“Infelizmente, o desenho não é bonito. Existem dificuldades, mas poderíamos estar fazendo melhor. Precisamos de compromisso real, que vá além do papel”, ressaltou.

Reflexos do evento na escuta dos(as) participantes

A intersetorialidade foi um dos eixos fortes do evento. Saúde, Justiça, Assistência, Educação não caminham isoladamente. E mais do que refletir sobre os desafios já existentes, o evento propôs caminhos. O impacto dos debates pôde ser medido também pelos depoimentos emocionados de quem participou da programação:

Fabiane da Silva Gomes, secretária do Fórum de Porto Nacional, se emocionou ao ouvir o juiz Afrânio dedicar suas palavras finais aos(às) adolescentes em cumprimento de medidas.

“Foi como se ele dissesse que esses(as) jovens estão sendo vistos(as), que não foram esquecidos(as) e não são invisíveis. Essa reflexão amplia também o nosso olhar sobre o tema. O evento proporcionou uma abordagem profundamente humanizada sobre a socioeducação, os direitos e a saúde mental”, compartilhou.

Em depoimento, Ana Luiza Fragoso, estudante de Psicologia da Uninassau, reforçou a importância da articulação intersetorial e a contribuição do evento para seu futuro como profissional. “Participar do evento foi uma experiência muito enriquecedora. O conteúdo foi extremamente útil, especialmente por trazer reflexões sobre o trabalho intersetorial e a importância da articulação entre Justiça, Saúde e Socioeducação. Com certeza contribuiu para ampliar minha compreensão sobre o tema e fortalecer minha futura atuação profissional”, comentou.

Já a assistente social Ângela Moreira Carneiro Jucie, que atua no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Gurupi, ressaltou como os conteúdos discutidos dialogam com os desafios concretos do seu cotidiano profissional. Segundo ela, os debates e as reflexões do evento trouxeram subsídios importantes para qualificar as práticas institucionais e fortalecer as ações voltadas aos(às) adolescentes em situação de vulnerabilidade:

“A temática abordada veio contribuir diretamente com a melhoria das políticas públicas que desenvolvemos no equipamento em que trabalho, voltado aos(às) adolescentes em cumprimento de medidas”, relatou.

Ao longo de toda a programação, composta por Mesas Temáticas, Conferências e momentos de escuta qualificada, a iniciativa validou a urgência de se pensar políticas públicas a partir da complexidade das vidas que atravessam o Sistema de Justiça.

Na avaliação do coordenador do evento, juiz José Eustáquio de Melo Júnior, o esforço coletivo representado pela programação aponta para um caminho de fortalecimento das políticas públicas e da atuação intersetorial.

“Reunimos representantes do Sistema de Justiça, da Rede de Saúde Mental e do Sistema Socioeducativo para construir pontes, e não muros entre essas áreas. A proposta foi refletir sobre práticas, desafios e soluções conjuntas para que o cuidado, a responsabilização e a proteção social possam caminhar lado a lado. Em um contexto em que as vulnerabilidades sociais e as questões de saúde mental atravessam cada vez mais o cotidiano das instituições de Justiça, torna-se imprescindível fortalecer estratégias intersetoriais e humanizadas. Nosso objetivo é justamente fomentar essa integração, garantindo que cada pessoa, especialmente aquelas em situação de mais fragilidade, tenha acesso à escuta, ao tratamento adequado e à Justiça em sua forma mais ampla: a Justiça que cuida, acolhe e transforma”, ratificou.

Foram dois dias de partilhas plurais e provocadoras, que trouxeram contribuições da Saúde, da Educação, da Assistência e da Justiça. A assinatura simbólica da Portaria Conjunta nº 12, de 2025, que institui um Grupo de Trabalho Interinstitucional voltado à construção de estratégias de cuidado em saúde mental no sistema socioeducativo, representou um marco institucional dessa caminhada coletiva. Mais do que um fechamento, o gesto sinaliza um compromisso com a continuidade de diálogo, de articulação e, principalmente, de escuta e ação transformadora.

Confira o segundo dia


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